Saturday, March 04, 2006

Do mito do "Gênio"

Seguem algumas idéias dispersas e mal desenvolvidas, datadas do início do ano corrente, sobre um tópico que há muito tempo ocupa minhas reflexões. Um texto algo "cabeçudo" para se começar, mas tem a vantagem de já estar pronto.

Termos como "talento" e "dom" pressupõem uma habilidade natural, portanto genética, para desempenhar funções específicas. Esses termos, quando aplicados a atividades criativas, principalmente mas não só "artísticas", implicam na suposição de que certas pessoas nascem com uma predisposição natural para criar, ou para se "inspirar", termo que está diretamente relacionado aos outros citados, como discutiremos depois. Essa suposta habilidade criativa nata constitui a condição que se costuma chamar de "genialidade" (e que na maioria dos casos trata-se de mera questão de gosto, já que tem gente que chama até um João Gilberto ou um Ray Conniff de "gênio").
No entanto, é fácil observar que nas artes, assim como em praticamente qualquer área do conhecimento humano, existem diversos graus de "genialidade" em diversos aspectos da criação. Muitos artistas tidos historicamente como "gênios" também fizeram, mesmo na maturidade, trabalhos pouco importantes ou relevantes, para não dizer ruins; da mesma forma, muitos artistas medíocres ou pouco relevantes entraram para a história por causa de uma ou outra obra tidas como "geniais" (o leitor pode recordar livremente alguns exemplos célebres da área com a qual estiver mais familiarizado).
Alguém já disse que o processo artístico é "5% de inspiração e 95% de transpiração" ou algo assim, e a frase não é despropositada. A "inspiração", às vezes confundida com alguma espécie de privilégio sortudo ou intervenção divina, pode de fato ocorrer, seres humanos têm "insights" com freqüência - no entanto, não é condição determinante nem mesmo fundamental no processo criativo; é apenas algo que pode facilitar quando se é inexperiente ou inseguro ou se está lidando com um material mais ou menos novo (acho que foi um publicitário quem disse que "insight é coisa de amador"). E o que são esses outros 95%? Simples: TRABALHO. Tem que ralar, nego.
De fato, a aura mística que se foi criando ao longo da história sobre conceitos como "inspiração", "talento" ou "dom" ajuda a mascarar esse componente que é na verdade o único indispensável ao processo criativo, já que sem um mínimo de trabalho não se faz nada, nem com toda a inspiração e talento do universo. E por quê se dá tanta importância para esses ideais romantizados e secundários? O fator central é evidente: reserva de mercado, oras! Pro mercado não é interessante a idéia de que a criação artística seja imediatamente acessível a qualquer um que esteja disposto a trabalhar em função disso. Conceitos vagos e fugidios como esses são, assim, idealizados e tratados como privilégio de poucos, de forma a esconder onde está realmente a essência fundamental do processo - no trabalho. Reparem como essa fetichização da criação funciona exatamente como a "fetichização da mercadoria" descrita por Marx no regime liberal: alienando o consumidor/operário do processo de confecção da mercadoria, esta é transformada em uma entidade gerada como que por vontade divina, na qual ele não reconhece o fruto de seu próprio trabalho.
Isso não significa que a inspiração não exista de fato; mas a verdade é que o artista experiente, com o tempo, aprende a controlar seu fluxo criativo durante o processo de modo a conseguir reproduzir espontaneamente o mecanismo cerebral pelo qual as "boas idéias" são concebidas. Ou seja, é possível através do esforço humano aprender a ter boas idéias e manipulá-las em favor de um discurso artístico, desde que se desenvolva (coisa que tmb é possível através do trabalho) a sensibilidade estética para tomar decisões durante o processo criativo. O "gênio", desse ponto de vista, nada mais é que uma pessoa de sensibilidade e percepção extremamente apurados, que tem controle mais ou menos absoluto sobre seus mecanismos criativos, de modo a conseguir deliberadamente, ainda que não sem esforço, parir uma obra-prima. Nenhuma obra-prima se faz exclusivamente por inspiração e "talento"; quanto a este último, resta apenas dizer que por mais facilidade algumas pessoas aparentem ter para aprender certas operações ou desenvolver certas habilidades, não é nada que não possa ser compensado por uma certa dose de trabalho árduo no caso de uma pessoa que não tenha tanta facilidade espontânea.
É interessante notar, entretanto, que entre o GÊNIO VAGABUNDO e o NERD C.D.F.(categoria na qual estão incluídos, via de regra, quase todos os INSTRUMENTISTAS VIRTUOSES), existem inúmeras matizes nas quais um artista pode se enquadrar...

8 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Inaugurei.

(Agora vou ler, espera.)

12:15 AM  
Anonymous Anonymous said...

Cibele diz:
vc fala da romantização da inspiração e defende o trabalho... eu partiria da romantização da ralação e defenderia a "criação" (talvez no fim desse no mesmo e a gente estivesse de acordo)

Cibele diz:
pq o que diferencia trabalho de genialidade é justamente a questão da alienção: é que pra quem trabalha, o trabalho é uma ameaça

Cibele diz:
é pra se ter medo de ñ trabalhar, e é pra se treinar cada vez mais pra isso

Cibele diz:
mas o trabalho ñ alienado é a criação, o que ñ quer dizer que conte com menos esforço

. diz:
comenta isso lá, pô

12:53 AM  
Anonymous Anonymous said...

*alienação

12:54 AM  
Anonymous Anonymous said...

vejo idéias da nossa discussão sobre este assunto registradas aí, como a da "reserva de mercado". hehe

11:51 PM  
Blogger Nitram said...

pois é! a idéia da reserva de mercado sintetiza perfeitamente a questão, resolvi adotar tmb. essa e outras muitas idéias extraídas de outras discussões, seja online, em botecos ou naquelas infames "horas do cafezinho"...

2:59 AM  
Anonymous Anonymous said...

só mais uma coisinha, martín fierro: acho que mesmo os 5% de inspiração são trabalho, já que os insights são momentos de reconhecimento de uma série encadeada de idéias que já estavam lá só esperando pra dar as caras. nosso inconsciente registra tudo, o insight é o gatilho que põe os liames nos registros e, ao mesmo, tempo desvela tudo.

2:51 PM  
Blogger Nitram said...

bela colocação, maíra! mas nesse caso, ainda seria uma porcentagem muito pequena de todo o trabalho envolvido no processo, certo? e não seria justamente essa inspiração, inconsciente e imprevista, uma forma de "trabalho alienado"?

10:57 PM  
Anonymous Anonymous said...

certo para a primeira. a segunda, nem sei responder porque pra ser sincera, com toda a minha doçura, não ligo. heheh seja lá o que for, só sei que é.
beijão!

2:31 PM  

Post a Comment

<< Home