Saturday, April 12, 2008

sábias palavras

Edgard Varèse (1883-1965):

"Eu não componho música experimental. Meus experimentos são feitos antes da música; depois, é o ouvinte quem deve experimentar."

Monday, March 06, 2006

Tarkowsky, Cage e a (mal)dita "Arte Experimental"

Recentemente, recebi por e-mail de meu velho camarada Pira, assim cunhado por ser piracicabano radicado em Bauru, um texto atribuído ao célebre cineasta Andrej Tarkowsky (autor de alguns clássicos do cinema "cult", dos quais talvez o mais conhecido seja Solaris, de 1972) sobre o problema da chamada "arte experimental".
O texto é curto (menos de 2 páginas) e grosso; o autor deixa sua posição bem clara desde o início, aqui transcrito:

Não, nada é mais absurdo do que relacionar palavras, como ‘procura’ ou ‘experimentação’, com obras de arte. Por detrás disso oculta-se fraqueza, vazio interior, falta de efetiva consciência criativa e vaidade deplorável. (...) A arte não é, de todo, uma ciência que nos possa permitir andar por aí a experimentar. Quando uma experimentação permanece meramente ao nível da experiência e, portanto, não representa apenas uma ínfima fase do trabalho que um artista terá de vencer no caminho para terminar o filme, o verdadeiro objetivo da arte fica, então, por atingir.

Não é preciso conhecer profundamente as idéias ou a obra de Tarkowsky para perceber a crítica evidente contida nesse parágrafo, e que é também o foco central de todo o texto; uma crítica à hipervalorização da "experimentação" na arte, entendida aqui como apenas uma etapa parcial de um processo muito mais complexo como um todo - hipervalorização que contribui, por sua vez, a uma desvalorização do TRABALHO em si, entendido, como comentei no primeiro texto aqui postado, em sua forma NÃO-ALIENADA (adendo feito por Cibele Correia), como a verdadeira essência da criação artística. Além da postura radical que o autor assume e faz questão de deixar transparecer em seu discurso, entretanto, há uma outra idéia neste trecho, talvez mais relevante para a compreensão dessa crítica do que a própria noção feita de "experimentação": a idéia da arte como ciência.
Ora, ninguém duvida da importância fundamental da experimentação no desenvolvimento científico; da mesma forma, ninguém qüestiona que o processo científico como um todo envolve uma estrutura muito mais complexa, na qual a busca empírica é apenas uma das etapas fundamentais - geralmente precedida pela definição de um método, formulado de acordo com uma hipótese inicial (uma suposição objetiva que se pretende verificar, isto é, um objetivo muito claro), e sucedida por um processo muito mais crucial e trabalhoso no qual o cientista deve extrair da observação, da sua "experimentação", dados concretos que lhe permitam chegar a uma conclusão sólida, que se sustente por si só, e que não se desfaça diante da primeira objeção.
Sim, tudo isto é muito evidente em se tratando de uma investigação científica, mas como isso se aplicaria à arte? Como é possível falar em "método" e "objetivo" em uma arte que não busca chegar a conclusões ou verdades objetivas, mas que é, em si, pura especulação?
Em um artigo de 1949 intitulado Forerunners of Modern Music, John Cage, outro artista polêmico e radical do século XX, tido por muitos como ícone máximo da dita "arte experimental", decompõe o processo de composição musical em 4 "vetores" que poderiam facilmente ser transpostos a todo e qualquer processo artístico:

A estrutura em uma música é sua divisibilidade em partes sucessivas, de frases a seções longas. Forma é o conteúdo, a continuidade. Método é o meio de se controlar a continuidade de nota para nota. O material da música é som e silêncio. Integrá-los é compor.
(Cage não deixa claro na última frase - "Integrating these is composing" - se se refere à integração de som e silêncio ou de todos os quatro elementos anteriormente descritos; ambos os sentidos são aceitáveis, e é bem provável que a ambigüidade seja intencional)

Cage dispõe tais elementos em um diagrama linear, mostrando que a estrutura, à extrema esquerda, é "propriamente controlada pela mente", de modo consciente; a forma, à extrema direita, pertence ao coração e deve ser livre para se expressar inconscientemente, enquanto método e material, dispostos lado a lado no centro do diagrama, podem ser controlados ou não, planejados ou improvisados. Sobre o material, Cage acrescenta ironicamente: "Normalmente a escolha dos sons é determinada pelo que é agradável e atraente para o ouvido, entendendo o deleite em dar ou receber dor como um indício de doença." E ao se referir à forma, ele ressalta em uma nota de rodapé: "Qualquer tentativa de excluir o 'irracional' é irracional. Qualquer estratégia composicional que seja completamente 'racional' é irracional ao extremo."
É fácil perceber como essas idéias estão intimamente ligadas à noção de "experimentação" na arte levantada por Tarkowsky, tanto mais se se conhece o trabalho que Cage viria a realizar nos anos seguintes explorando o uso do acaso e de procedimentos aleatórios (como o "lance de dados" de Mallarmé) na composição musical. Entretanto, como evidencia sua objetividade ao decompor o processo artístico sistematicamente em quatro elementos estruturais fundamentais, sua leitura reflete uma concepção de arte que é, assim como a de Tarkowsky, essencialmente científica, voltada a uma espécie de "descoberta direcionada" - uma descoberta daquilo que se quer, de antemão, descobrir; de fato, Cage nunca negligenciou a necessidade de um método, mesmo quando este era deixado ao acaso, como em Imaginary Landscape No. 4, peça de 1951 para 12 rádios. Nessa obra, existe não um método, mas um modus operandi pré-determinado segundo o qual se espera que o acaso gere espontaneamente, por meio da ação dos intérpretes, tanto o material quanto o "método composicional" propriamente dito (a partitura da obra indica volume e durações, mas ao invés de sons pré-definidos são especificadas freqüências que devem ser sintonizadas nos aparelhos - qualquer resultado, seja silêncio, ruído branco, uma fala humana ou uma música pop qualquer, é aceitável). Cage tinha objetivos claramente definidos ao conceber esses "experimentos", que transcendiam a mera definição de seus métodos; ele estava buscando, de fato, mas tinha consciência plena do que buscava e de como encontrá-lo.
Da mesma forma, Cage não começou a introduzir objetos entre as cordas de seu piano por achar que tal processo extravagante pudesse chocar ou impressionar o público, ou porque gostava de "experimentar", mas porque enxergou aí uma forma eficaz de alterar o som do instrumento e torná-lo mais adequado ao que ele queria fazer na ocasião. No processo de composição de cada obra que Cage escreveu para piano preparado, essa experimentação serviu apenas para determinar quais objetos, em quais posições, produziriam quais resultados sonoros; a criação propriamente dita veio somente depois de se chegar a uma posição inequívoca quanto à preparação e manipulação do material, e pouco tem a ver com o processo experimental que a precedeu.
Segundo Tarkowsky, "a chamada Arte Moderna, na sua maior parte, é apenas uma ficção, pois assenta no pressuposto errôneo de que o método poderá se tornar o significado e a finalidade da arte." Ele diz em seguida que o conceito de "vanguarda" é insensato por ser absurdo falar em "progresso" na arte; da mesma forma, não se pode dizer que um artista seja mais "evoluído" que outro. Trata-se aqui de uma questão meramente terminológica; de apropriar-se de certos termos para falar de algo a que tais termos não são aplicáveis. O mesmo ocorre na chamada "arte experimental": o erro está não na experimentação em si, mas em exacerbá-la, exagerando a relevância de seu papel na obra realizada, ao rotular como "experimental" o resultado de um processo complexo que não começa nem termina na busca, mas ao qual a própria busca está sujeita e pelo qual está necessariamente condicionada. E o próprio Tarkowsky, ao se indagar sobre a origem do termo, percebe que o equívoco não é de quem cria mas de quem rotula:

Não terão sido aqueles que, sendo incapazes de separar o joio do trigo, começaram a falar de vanguarda e experimentação? Aqueles que, perante as novas estruturas estéticas, pura e simplesmente perderam a cabeça, não se puderam orientar nesta nova Coisa, e, não conseguindo encontrar nenhuns
(sic) critérios próprios, assim submeteram tudo a este conceito para, ao menos, não se enganarem? Como foi ridículo quando interrogaram Pablo Picasso acerca de sua procura artística. Indignado com esta pergunta, Picasso respondeu, inteligente e preciso: ‘Eu não procuro, eu apenas encontro.’

O Pira, ao me encaminhar o texto, quando da divulgação do site da "Frente Experimental de Música" do extinto Coletivo Samacô, fez o seguinte comentário: "O que mais me fez pensar nesse texto é que o rótulo 'experimental' pode ser mesmo muito incômodo dependendo de como você entende o termo; pode até soar pejorativo." Bem, se penso em tudo que tem sido feito sob o pretexto do "experimentalismo" recentemente, de fato não posso atribuir ao termo "arte experimental" qualquer conotação que não seja pejorativa. Analisando a mesma produção à luz desse texto, no entanto, fica evidente que não se trata de negar a importância da experimentação no trabalho de quem pretende criar algo verdadeiramente original, mas que o maior equívoco de quem, décadas depois, insiste em fazer "arte experimental" pelo processo ou pelo método em si, sem ter realmente o que buscar ou o que dizer, é atribuir a tal experimentação o próprio sentido da arte, seu objetivo primeiro e único, quando na verdade não pode haver busca alguma sem uma consciência objetiva do que se espera encontrar. Por isso, ao concluir o texto, referindo-se ao trabalho do cineasta, Tarkowsky diz: "um artista pode experimentar, por aí, tanto quanto queira; isso continua a ser um assunto pessoal. Mas a partir do momento em que ele fixa as suas experiências na película, quer dizer, objetiva o seu conceito, temos de aceitar que já encontrou o que quer dizer aos espectadores com o filme."
Sim, ele tem toda a razão e eu assino embaixo.

(Quanto à Frente Experimental de Música, podíamos, na época, aceitar tal denominação entendendo o termo "Experimental", aí, como uma qualidade da própria Frente, que não se refere, de modo algum, à Música por ela apresentada. Entretanto, eu nunca tive convicção de que isso se aplicasse a todo o trabalho produzido pela Frente da mesma forma que à minha própria produção...)

Última
atualização e revisão em 18/04/2008

Saturday, March 04, 2006

Do mito do "Gênio"

Seguem algumas idéias dispersas e mal desenvolvidas, datadas do início do ano corrente, sobre um tópico que há muito tempo ocupa minhas reflexões. Um texto algo "cabeçudo" para se começar, mas tem a vantagem de já estar pronto.

Termos como "talento" e "dom" pressupõem uma habilidade natural, portanto genética, para desempenhar funções específicas. Esses termos, quando aplicados a atividades criativas, principalmente mas não só "artísticas", implicam na suposição de que certas pessoas nascem com uma predisposição natural para criar, ou para se "inspirar", termo que está diretamente relacionado aos outros citados, como discutiremos depois. Essa suposta habilidade criativa nata constitui a condição que se costuma chamar de "genialidade" (e que na maioria dos casos trata-se de mera questão de gosto, já que tem gente que chama até um João Gilberto ou um Ray Conniff de "gênio").
No entanto, é fácil observar que nas artes, assim como em praticamente qualquer área do conhecimento humano, existem diversos graus de "genialidade" em diversos aspectos da criação. Muitos artistas tidos historicamente como "gênios" também fizeram, mesmo na maturidade, trabalhos pouco importantes ou relevantes, para não dizer ruins; da mesma forma, muitos artistas medíocres ou pouco relevantes entraram para a história por causa de uma ou outra obra tidas como "geniais" (o leitor pode recordar livremente alguns exemplos célebres da área com a qual estiver mais familiarizado).
Alguém já disse que o processo artístico é "5% de inspiração e 95% de transpiração" ou algo assim, e a frase não é despropositada. A "inspiração", às vezes confundida com alguma espécie de privilégio sortudo ou intervenção divina, pode de fato ocorrer, seres humanos têm "insights" com freqüência - no entanto, não é condição determinante nem mesmo fundamental no processo criativo; é apenas algo que pode facilitar quando se é inexperiente ou inseguro ou se está lidando com um material mais ou menos novo (acho que foi um publicitário quem disse que "insight é coisa de amador"). E o que são esses outros 95%? Simples: TRABALHO. Tem que ralar, nego.
De fato, a aura mística que se foi criando ao longo da história sobre conceitos como "inspiração", "talento" ou "dom" ajuda a mascarar esse componente que é na verdade o único indispensável ao processo criativo, já que sem um mínimo de trabalho não se faz nada, nem com toda a inspiração e talento do universo. E por quê se dá tanta importância para esses ideais romantizados e secundários? O fator central é evidente: reserva de mercado, oras! Pro mercado não é interessante a idéia de que a criação artística seja imediatamente acessível a qualquer um que esteja disposto a trabalhar em função disso. Conceitos vagos e fugidios como esses são, assim, idealizados e tratados como privilégio de poucos, de forma a esconder onde está realmente a essência fundamental do processo - no trabalho. Reparem como essa fetichização da criação funciona exatamente como a "fetichização da mercadoria" descrita por Marx no regime liberal: alienando o consumidor/operário do processo de confecção da mercadoria, esta é transformada em uma entidade gerada como que por vontade divina, na qual ele não reconhece o fruto de seu próprio trabalho.
Isso não significa que a inspiração não exista de fato; mas a verdade é que o artista experiente, com o tempo, aprende a controlar seu fluxo criativo durante o processo de modo a conseguir reproduzir espontaneamente o mecanismo cerebral pelo qual as "boas idéias" são concebidas. Ou seja, é possível através do esforço humano aprender a ter boas idéias e manipulá-las em favor de um discurso artístico, desde que se desenvolva (coisa que tmb é possível através do trabalho) a sensibilidade estética para tomar decisões durante o processo criativo. O "gênio", desse ponto de vista, nada mais é que uma pessoa de sensibilidade e percepção extremamente apurados, que tem controle mais ou menos absoluto sobre seus mecanismos criativos, de modo a conseguir deliberadamente, ainda que não sem esforço, parir uma obra-prima. Nenhuma obra-prima se faz exclusivamente por inspiração e "talento"; quanto a este último, resta apenas dizer que por mais facilidade algumas pessoas aparentem ter para aprender certas operações ou desenvolver certas habilidades, não é nada que não possa ser compensado por uma certa dose de trabalho árduo no caso de uma pessoa que não tenha tanta facilidade espontânea.
É interessante notar, entretanto, que entre o GÊNIO VAGABUNDO e o NERD C.D.F.(categoria na qual estão incluídos, via de regra, quase todos os INSTRUMENTISTAS VIRTUOSES), existem inúmeras matizes nas quais um artista pode se enquadrar...