Recentemente, recebi por e-mail de meu velho camarada
Pira, assim cunhado por ser piracicabano radicado em Bauru, um texto atribuído ao célebre cineasta
Andrej Tarkowsky (autor de alguns clássicos do cinema "cult", dos quais talvez o mais conhecido seja
Solaris, de 1972) sobre o problema da chamada "arte experimental".
O texto é curto (menos de 2 páginas) e grosso; o autor deixa sua posição bem clara desde o início, aqui transcrito:
Não, nada é mais absurdo do que relacionar palavras, como ‘procura’ ou ‘experimentação’, com obras de arte. Por detrás disso oculta-se fraqueza, vazio interior, falta de efetiva consciência criativa e vaidade deplorável. (...) A arte não é, de todo, uma ciência que nos possa permitir andar por aí a experimentar. Quando uma experimentação permanece meramente ao nível da experiência e, portanto, não representa apenas uma ínfima fase do trabalho que um artista terá de vencer no caminho para terminar o filme, o verdadeiro objetivo da arte fica, então, por atingir.
Não é preciso conhecer profundamente as idéias ou a obra de Tarkowsky para perceber a crítica evidente contida nesse parágrafo, e que é também o foco central de todo o texto; uma crítica à hipervalorização da "experimentação" na arte, entendida aqui como apenas uma etapa parcial de um processo muito mais complexo como um todo - hipervalorização que contribui, por sua vez, a uma desvalorização do TRABALHO em si, entendido, como comentei no primeiro texto aqui postado, em sua forma NÃO-ALIENADA (adendo feito por
Cibele Correia), como a verdadeira essência da criação artística. Além da postura radical que o autor assume e faz questão de deixar transparecer em seu discurso, entretanto, há uma outra idéia neste trecho, talvez mais relevante para a compreensão dessa crítica do que a própria noção feita de "experimentação": a idéia da arte como
ciência.
Ora, ninguém duvida da importância fundamental da experimentação no desenvolvimento científico; da mesma forma, ninguém qüestiona que o processo científico como um todo envolve uma estrutura muito mais complexa, na qual a busca empírica é apenas uma das etapas fundamentais - geralmente precedida pela definição de um
método, formulado de acordo com uma hipótese inicial (uma suposição objetiva que se pretende verificar, isto é, um
objetivo muito claro), e sucedida por um processo muito mais crucial e trabalhoso no qual o cientista deve extrair da observação, da sua "experimentação", dados concretos que lhe permitam chegar a uma conclusão sólida, que se sustente por si só, e que não se desfaça diante da primeira objeção.
Sim, tudo isto é muito evidente em se tratando de uma investigação científica, mas como isso se aplicaria à arte? Como é possível falar em "método" e "objetivo" em uma arte que não busca chegar a conclusões ou verdades objetivas, mas que é, em si, pura especulação?
Em um artigo de 1949 intitulado
Forerunners of Modern Music,
John Cage, outro artista polêmico e radical do século XX, tido por muitos como ícone máximo da dita "arte experimental", decompõe o processo de composição musical em 4 "vetores" que poderiam facilmente ser transpostos a todo e qualquer processo artístico:
A estrutura em uma música é sua divisibilidade em partes sucessivas, de frases a seções longas. Forma é o conteúdo, a continuidade. Método é o meio de se controlar a continuidade de nota para nota. O material da música é som e silêncio. Integrá-los é compor.
(Cage não deixa claro na última frase - "Integrating these is composing" - se se refere à integração de som e silêncio ou de todos os quatro elementos anteriormente descritos; ambos os sentidos são aceitáveis, e é bem provável que a ambigüidade seja intencional)
Cage dispõe tais elementos em um diagrama linear, mostrando que a estrutura, à extrema esquerda, é "propriamente controlada pela mente", de modo consciente; a forma, à extrema direita, pertence ao coração e deve ser livre para se expressar inconscientemente, enquanto método e material, dispostos lado a lado no centro do diagrama, podem ser controlados ou não, planejados ou improvisados. Sobre o material, Cage acrescenta ironicamente: "Normalmente a escolha dos sons é determinada pelo que é agradável e atraente para o ouvido, entendendo o deleite em dar ou receber dor como um indício de doença." E ao se referir à forma, ele ressalta em uma nota de rodapé: "Qualquer tentativa de excluir o 'irracional' é irracional. Qualquer estratégia composicional que seja completamente 'racional' é irracional ao extremo."
É fácil perceber como essas idéias estão intimamente ligadas à noção de "experimentação" na arte levantada por Tarkowsky, tanto mais se se conhece o trabalho que Cage viria a realizar nos anos seguintes explorando o uso do acaso e de procedimentos aleatórios (como o "lance de dados" de Mallarmé) na composição musical. Entretanto, como evidencia sua objetividade ao decompor o processo artístico sistematicamente em quatro elementos estruturais fundamentais, sua leitura reflete uma concepção de arte que é, assim como a de Tarkowsky, essencialmente
científica, voltada a uma espécie de "descoberta direcionada" - uma descoberta daquilo que se quer, de antemão, descobrir; de fato, Cage nunca negligenciou a necessidade de um
método, mesmo quando este era deixado ao acaso, como em
Imaginary Landscape No. 4, peça de 1951 para 12 rádios. Nessa obra, existe não um método, mas um
modus operandi pré-determinado segundo o qual se espera que o acaso gere espontaneamente, por meio da ação dos intérpretes, tanto o material quanto o "método composicional" propriamente dito (a partitura da obra indica volume e durações, mas ao invés de sons pré-definidos são especificadas freqüências que devem ser sintonizadas nos aparelhos - qualquer resultado, seja silêncio, ruído branco, uma fala humana ou uma música
pop qualquer, é aceitável). Cage tinha objetivos claramente definidos ao conceber esses "experimentos", que transcendiam a mera definição de seus métodos; ele estava buscando, de fato, mas tinha consciência plena do que buscava e de como encontrá-lo.
Da mesma forma, Cage não começou a introduzir objetos entre as cordas de seu piano por achar que tal processo extravagante pudesse chocar ou impressionar o público, ou porque gostava de "experimentar", mas porque enxergou aí uma forma eficaz de alterar o som do instrumento e torná-lo mais adequado ao que ele queria fazer na ocasião. No processo de composição de cada obra que Cage escreveu para piano preparado, essa experimentação serviu apenas para determinar quais objetos, em quais posições, produziriam quais resultados sonoros; a criação propriamente dita veio somente depois de se chegar a uma posição inequívoca quanto à preparação e manipulação do material, e pouco tem a ver com o processo experimental que a precedeu.
Segundo Tarkowsky, "a chamada Arte Moderna, na sua maior parte, é apenas uma ficção, pois assenta no pressuposto errôneo de que o método poderá se tornar o significado e a finalidade da arte." Ele diz em seguida que o conceito de "vanguarda" é insensato por ser absurdo falar em "progresso" na arte; da mesma forma, não se pode dizer que um artista seja mais "evoluído" que outro. Trata-se aqui de uma questão meramente terminológica; de apropriar-se de certos termos para falar de algo a que tais termos não são aplicáveis. O mesmo ocorre na chamada "arte experimental": o erro está não na experimentação em si, mas em exacerbá-la, exagerando a relevância de seu papel na obra realizada, ao rotular como "experimental" o resultado de um processo complexo que não começa nem termina na busca, mas ao qual a própria busca está sujeita e pelo qual está necessariamente condicionada. E o próprio Tarkowsky, ao se indagar sobre a origem do termo, percebe que o equívoco não é de quem cria mas de quem rotula:
Não terão sido aqueles que, sendo incapazes de separar o joio do trigo, começaram a falar de vanguarda e experimentação? Aqueles que, perante as novas estruturas estéticas, pura e simplesmente perderam a cabeça, não se puderam orientar nesta nova Coisa, e, não conseguindo encontrar nenhuns (sic) critérios próprios, assim submeteram tudo a este conceito para, ao menos, não se enganarem? Como foi ridículo quando interrogaram Pablo Picasso acerca de sua procura artística. Indignado com esta pergunta, Picasso respondeu, inteligente e preciso: ‘Eu não procuro, eu apenas encontro.’
O Pira, ao me encaminhar o texto, quando da divulgação do site da "Frente Experimental de Música" do extinto Coletivo Samacô, fez o seguinte comentário: "O que mais me fez pensar nesse texto é que o rótulo 'experimental' pode ser mesmo muito incômodo dependendo de como você entende o termo; pode até soar pejorativo." Bem, se penso em tudo que tem sido feito sob o pretexto do "experimentalismo" recentemente, de fato não posso atribuir ao termo "arte experimental" qualquer conotação que não seja pejorativa. Analisando a mesma produção à luz desse texto, no entanto, fica evidente que não se trata de negar a importância da experimentação no trabalho de quem pretende criar algo verdadeiramente original, mas que o maior equívoco de quem, décadas depois, insiste em fazer "arte experimental" pelo
processo ou pelo
método em si, sem ter realmente o que buscar ou o que dizer, é atribuir a tal experimentação o próprio sentido da arte, seu objetivo primeiro e único, quando na verdade não pode haver busca alguma sem uma consciência objetiva do que se espera encontrar. Por isso, ao concluir o texto, referindo-se ao trabalho do cineasta, Tarkowsky diz: "um artista pode experimentar, por aí, tanto quanto queira; isso continua a ser um assunto pessoal. Mas a partir do momento em que ele fixa as suas experiências na película, quer dizer, objetiva o seu conceito, temos de aceitar que já
encontrou o que quer dizer aos espectadores com o filme."
Sim, ele tem toda a razão e eu assino embaixo.
(Quanto à Frente Experimental de Música, podíamos, na época, aceitar tal denominação entendendo o termo "Experimental", aí, como uma qualidade da própria Frente, que não se refere, de modo algum, à Música por ela apresentada. Entretanto, eu nunca tive convicção de que isso se aplicasse a todo o trabalho produzido pela Frente da mesma forma que à minha própria produção...)
Última atualização e revisão em 18/04/2008